Reincidência da violência contra meninas e mulheres motiva tese do PPGPSDH/UCPel

No Brasil, uma mulher é morta a cada duas horas. A estatística coloca o país na 5º posição do ranking mundial de Feminicídio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Um recorte dessa realidade violenta contra meninas e mulheres, na Zona Oeste de Rio Grande, motivou a tese de doutorado da assistente social, Fernanda da Fonseca Pereira, no Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (PPGPSDH/UCPel).
Intitulada “A reincidência da violência contra mulheres e meninas pobres”, a pesquisa analisou 101 famílias moradoras da comunidade, composta por cerca de nove bairros. O estudo surgiu da prática profissional de Fernanda, vinculada à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Rio Grande (FURG), no Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC). “A minha inserção no CAIC começou em 2008 e, a partir dali, percebi que havia inúmeros casos de violência contra meninas e mulheres”, conta.
Com os atendimentos prestados no Centro, via Escola de Ensino Fundamental, Unidade Básica de Saúde e Projetos Comunitários, a pesquisadora iniciou um banco de dados de forma independente. Com os números, foi possível observar a predominância das situações de violência física, psicológica e também de negligência, ou seja, traçar o perfil da comunidade marcada pela violência social. “Quando ingressei no doutorado, em 2015, tinha um apanhado de dados que deflagrava a comunidade da Zona Oeste de Rio Grande”, diz.
A partir dos números, Fernanda pôde perceber que 80% das vítimas de violência na Zona Oeste de Rio Grande eram meninas e mulheres. Dessas, 67% tinham entre 13 e 18 anos e 50% estavam envolvidas com prostituição infantil. Segundo a assistente social, os casos foram identificados em famílias que sofreram situações de violência por mais de duas vezes. E isso deixa implícita negligência institucional do Estado, pois as ocorrências retornavam mesmo depois de encaminhadas para a rede de proteção – formalizada pelo Conselho Tutelar e Centro Especializado de Assistência Social (CREAS).
Ainda foi identificado histórico de violência psicológica em 81% das meninas e mulheres; violência física em 74% e violência sexual em 39% das pesquisadas. Do total de vítimas de violência física e abuso sexual, 79% dos casos foram negligenciados, o que indica uma contradição dentro do Estado Democrático de Direito, responsável pela garantia e acesso a direitos e proteção, de acordo com Fernanda. “É uma mescla de situações de violência que colocam essas mulheres como vítima da violência social que a gente produz e reproduz”, afirma.
Outra característica apontada na tese é a fragilidade no acesso a direitos civis, como RG, CPF e certidão de nascimento, identificada em 61 famílias. Além disso, são pessoas com baixa escolaridade e com trabalhos informais (71%). A maioria das famílias pesquisadas era sustentada por mulheres e 60% eram famílias de mãe solteira. “São mulheres que são violentadas e reproduzem a violência. Elas sofrem no seu dia a dia com a violência social e com o trabalho precarizado, vivem da cata do lixo”, completa.
De acordo com a doutora, esses dados alertam para a feminização da pobreza no Brasil e não são específicos da Zona Oeste de Rio Grande. Ao analisar o cenário nacional, na maior parte das vezes, as mulheres estão em trabalhos precários e de meio turno para poder cuidar da casa e da família. “A questão da violência social, construída historicamente no Brasil, faz com que a gente atente para esse tema”, frisa.
Machismo como determinante da violência
Um dos objetivos da tese de Fernanda era entender o motivo da reincidência da violência contra meninas e mulheres pobres da Zona Oeste de Rio Grande. Segundo explica, muito vem da construção da sociedade brasileira e também latino-americana. Ao estudar tal temática, uma categoria aparece sempre presente: o patriarcado, ou seja, a hegemonia masculina que sobrepõe valores sociais. Essa característica é responsável pela construção do Estado de Direito e organização social de gênero.
E é justamente essa organização que coloca o patriarcado como um dos determinantes da violência, assentada na histórica desigualdade social do país. “Então se entende que a violência física, psicológica ou qualquer outra violência contra mulheres e meninas não é um fato isolado”, explica. Por isso, os dados obtidos na comunidade em Rio Grande estão dentro das estatísticas nacionais. Inclusive, o fato de que a maior parte dos casos de violência contra mulher ocorre dentro de casa, na família.
Assim como o Estado, a família é uma instituição social que reproduz o patriarcado, no qual a mulher desempenha papéis pré-determinados, como a submissão. Conforme acredita a pesquisadora, Estado, família e escola integram a organização social de gênero e contribuem na produção e reprodução da violência social sentida na Zona Oeste de Rio Grande, mas também em âmbito nacional, ilustrada pelo alarmante número de mulheres assassinadas no país.
Porém, conforme continua a explicar, o município de Rio Grande possui especificidades que contribuem para a violência social. Alguns exemplos citados são o Porto, local onde desembarcam inúmeras pessoas, o envolvimento com tráfico de drogas e a rede de exploração sexual de crianças e adolescentes. “Sabemos que é um município incluído em estudos nacionais como importante para o alerta da exploração sexual de crianças e adolescentes por se tratar de uma rota de exploração sexual”, finaliza.
Além da burocracia: estratégias e contracultura
Do total de 101 famílias pesquisas, 82 apresentaram situações de violência. Dessas, três tiveram o desdobramento na rede socioassistencial acompanhado pelo estudo e demonstraram a preponderante omissão do Estado na garantia e manutenção dos direitos de meninas e mulheres. Para exemplificar, a doutora cita a Lei Maria da Penha, que garante registro de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito à vítima. “Infelizmente não acontece assim, nos desdobramentos da rede nós vimos situações desconsideradas como violência física mesmo a mulher apresentando hematomas em seu corpo”, acrescenta.
Por isso, a pesquisa propõe ações estratégicas para diminuir o quadro identificado. Como estreitamento na relação entre os órgãos que representam a proteção de meninas e mulheres em situação de violência. Isso porque, na maioria dos casos, o contexto da família não é considerado em uma decisão judicial, mesmo estando descrito em pareceres da rede. “A gente precisa deixar de olhar simplesmente um papel e buscar conhecer a vida das pessoas envolvidas”, acredita.
Ou seja, Fernanda propõe um olhar enquanto rede, para entender e acompanhar os processos dos casos. Além disso, destaca a importância do impacto social gerado pelas pesquisas e a necessidade de uma conversa entre Universidade e criação de Políticas Públicas em um município. “A Universidade tem que ser parceira dos órgãos públicos e juntos devem transformar para melhor a nossa sociedade”, afirma.
Como estratégia operacional, a pesquisadora cita a importância de escolas, por exemplo, trabalharem com valores sociais. Desse modo, pensa em uma contracultura hegemônica do patriarcado para questionar padrões como o fato de meninos brincarem com carrinhos e meninas com bonecas. “São questões que podemos pensar juntos quando se preocupa com o planejamento de políticas públicas eficazes na minimização dessas situações de violência”, conclui.
Redação: Piero Vicenzi

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