Pesquisa do PPGPSDH/UCPel analisa problemática da habitação popular em Pelotas

Foi a partir da ordem de despejo recebida pelos moradores da ocupação Estrada do Engenho, localizada às margens do Canal São Gonçalo, que o doutorando do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (PPGPSDH/UCPel), Nino Rafael Kruger, resolveu trabalhar com a problemática da habitação social. Desde 2010, áreas de ocupação irregular aumentaram 25% no município. Especialmente a Estrada do Engenho foi uma das localidades que recebeu novos moradores. 
Ao tentar entender o motivo da Ação Civil Pública, movida pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul para retirar os moradores da localidade, Kruger identificou o Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) como um dos fatores para o aumento da população localizada as margens do São Gonçalo. “Nos aproximamos da comunidade para perguntar o que os levou para lá e identificamos o MCMV como um dos motivos”, conta. 
Em 2010, o perímetro urbano de Pelotas tinha contabilizado 150 áreas de ocupação irregular. Em 2017, o número subiu para 205. Entretanto, no mesmo período, Pelotas contratou 79 empreendimentos do MCMV, gerando 9.692novas habitações. “Em sete anos, o número de áreas irregulares aumentou 25%, mesmo com a expansão do programa habitacional em Pelotas”, comenta. 
O programa criado pelo Governo Federal tem como prioridade o atendimento a pessoas de baixa renda. Todavia, em Pelotas, empreendimentos voltados à faixa 1 são minoria. Conforme relatório da Caixa Econômica Federal, apenas sete empreendimentos foram para este público dentre os 79 construídos entre 2009 e 2018. “Para quem mais precisava, menos foi produzido. O que choca é que o número de contratações é maior para a faixa 3 – até 7 mil reais de renda – do que para a faixa 1”, comenta. 
Dos 79 empreendimentos, 16 são voltados para a faixa 1 e meio e 56 para faixas 2 e 3. Na avaliação de Kruger, o MCMV não cumpre o seu enunciado, voltado prioritariamente para famílias de baixa renda. “MCMV se apresenta para garantir o direito à moradia e reduzir do déficit habitacional e isso não ocorreu em Pelotas”, lembra o doutorando.
De acordo com a pesquisa, um dos problemas do programa habitacional ocorreu devido o Governo Federal ter delegado aos municípios o seu desenvolvimento. “O município pegou e atirou na mão do mercado imobiliário, que não tem comprometimento com a questão social. O empresário tem compromisso com o lucro e não com pessoas em situação de vulnerabilidade”, aponta.  
Dificuldades do dia a dia 
Um dos problemas enfrentados pelos beneficiários do MCMV faixa 1 é a localização dos empreendimentos, distantes do centro da cidade. Conforme o doutorando, isso ocorre porque as construtoras escolhem o terreno menos valorizado e o mais distante do centro. “Nesses locais ele vai produzir o máximo de habitações possíveis, construídas com materiais de menor qualidade”, explica. Creches, escolas, postos de saúde não são ou demoram muito a serem instalados nessas localidades que não contam com infraestrutura urbana. 
Além da localização distante do centro da cidade – o que gera muitas dificuldades visto esse público necessitar do acesso ao centro da cidade para obter algum tipo de renda – o projeto arquitetônico dos edifícios não leva em consideração o estilo de vida das pessoas contempladas. Por exemplo, boa parte dessa população depende de veículos de tração animal para obter renda. “Imagina colocar um pescador criado na beira d’agua em um apartamento de 49 metros quadrados? Ou então um catador de resíduos sólidos que destina um dos dois quartos ao cavalo”, questiona.
 
Para Kruger, os empreendimentos faixa 1 do MCMV não são pensados para o estilo de vida das populações de baixa renda e, devido a isso, quando o morador consegue adquirir o imóvel acaba não permanecendo por muito tempo e volta à área irregular. Outros problemas com falta de acompanhamento assistencial ao beneficiário, violência, tráfico de drogas que domina boa parte dos condomínios faixa 1 também são dificuldades enfrentadas.  
Ação civil pública
Residindo a mais de 40 anos na Estrada do Engenho, a comunidade vive em local importante para a história de Pelotas, denominado Passo dos Negros. A área, entre os séculos XVIII e XIX, concentrava grande movimentação de escravos, ali comercializados e remetidos em direção aos saladeiros. Formada originariamente por negros e pescadores, e, mais recentemente, por catadores de lixo, a área passa por período de grande especulação imobiliária devido a construção de diversos condomínios de luxo às margens do Canal São Gonçalo. 
O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul move desde 2009 uma Ação Civil Pública para remover os moradores da Estrada do Engenho. A justificativa para a remoção é a acusação por danos ambientais ao canal. Conforme Kruger, historicamente, o Canal sempre recebeu muitos detritos desde a época das charqueadas e do Engenho. “Tem muitas mansões ali que não tem saneamento. O parte do esgoto da cidade vai para ali também, e quem tá poluindo o canal são essas pessoas?”, questiona.   
Kruger ainda lembra que muitas alterações no Plano Diretor do município vem ocorrendo para beneficiar o setor imobiliário. “Existe algo maior na ação civil pública. O que era área de preservação, metade já deixou de ser. Assim que removerem a comunidade vão em entregar a área para empresários da construção civil”, aponta. 
Áreas irregulares como reserva de mercado
Em 2008, a Prefeitura de Pelotas contabilizava 156 áreas irregulares. Já em 2017, o número aumentou para 205. De acordo com o doutorando, a justificativa dada pela Prefeitura foi a contratação de novos profissionais para desenvolvimento do trabalho. “Identificaram 20 mil lotes irregulares. Fizeram a regularização fundiária de oito mil lotes em seis meses, mas menos de 10% chegaram ao final porque o processo é eleitoreiro”, avalia. 
 
Conforme Kruger, dar o título de propriedade ainda não resolve totalmente o problema porque muitas vezes a área já está demarcada para ser vendida. Ele explica que ao perceber dificuldade na remoção de uma comunidade, o poder público regulariza. “Por não ter infraestrutura, o empresário compra o terreno barato dos moradores e remove todos dali. Existem interesses de manter áreas de ocupação irregular como reserva de mercado e é isso que acontece na Estrada do Engenho”, completa. 
 
Defesa com a participação da comunidade
Como a ideia de pesquisar o tema partiu de questionamentos da comunidade sobre a ação civil pública, a dissertação de Kruger foi defendida e também avaliada pela comunidade. No dia 30 de julho, moradores da comunidade e interessados no tema compareceram na Estrada do Engenho para ver parte da pesquisa que Kruger desenvolve no PPG da UCPel.
 
Por ser um projeto com muitas aspirações, logo após a qualificação, Kruger foi convidado a cursar diretamente o doutorado. Para isso, o desafio foi desenvolver no período de três meses a sua dissertação. “A dissertação é apenas um dos itens da tese, em que trato especialmente do Programa MCMV”, explica. 
 
Para representante da comunidade e integrante da banca de avaliação da dissertação, Luís Fernando Farias Lucas, é obrigação da Universidade participar do dia a dia das comunidades. “Não queremos mais pessoas que venham aqui apenas para buscar material e depois ir embora sem dar satisfações”, diz o pescador. 
A moradora Arlinda de Oliveira Borges destaca a importância da comunidade sentir que o problema da população também é da Universidade. “A gente sabe do direito que temos, mas não sabemos ainda da nossa força, não sabemos o apoio que temos”. A moradora avalia que as leis existem para alguns e os programas habitacionais não são voltados às populações de baixa renda. “Nino é um exemplo de força e vontade de querer mostrar à população a realidade das coisas”, finaliza.  
Redação: Rita Wicth – MTB 14101  

foto da notícia